sexta-feira, 4 de novembro de 2011

geraldo vandré, aboio e funcionalismo público

Aboio é um tipo de canto de trabalho. É um cantar empostado, arrastado, de notas longuíssimas, cantadas durante o pastoreio de bois. Deixar os bois juntos com a sua voz, chamá-los, mas principalmente uma maneira de fazer o tempo passar, ou prolongá-lo tanto quanto a nota cantada. Como a maioria dos cantos de trabalho, tem certa tristeza, até porque trabalhar é ruim. Ruim, assim, um pouco mais que isso, porque implica toda a limitação de nossa vida, o tempo que a gente vende para subsistência própria ou reconhecimento dos outros. Mas no fim é esse sanguinho a mais que a gente dá que faz um lugar, uma cama pra dormir, um rango pra alma. Tudo isso está no aboio, inclusive a noção de que o boi que pasta e engorda é a gente mesmo, trabalhadores.

O disco “das terras de benvirá”, do Geraldo Vandré, vem nesse caminho dos cantos de trabalho, de alienação, tristeza. É um disco lindo, feito depois de sua volta após mais de quatro anos exilado. Desde então, assumiu um posto de funcionário público, afastou-se da música e foi trabalhar. Seu último disco foi este, quase todo cantado na forma do aboio, triste e em tons menores. O que aconteceu com Vandré depois é mal sabido, só se sabe que ele mesmo, em entrevistas, disse que não havia significado algum em continuar.
Claro que houve todas as questões, que ele teria sido torturado, castrado (?,!) e finalmente enlouquecido, escrevendo músicas para as forças armadas. De qualquer maneira, ele disse que se escreveu uma música como “Fabiana”, em homenagem à força aérea brasileira, porque ele ama e amou a aviação. Mas tudo parecia meio bizarro, devido a época vivida, seu engajamento anterior como combatente cultural da ditadura, como assim? Contradição. Vandré era um dos artistas mais engajados de sua época.

É bem por causa disso que ele foi primeiramente salvo da cadeia por Caetano Veloso, que tinha avisado que os policiais estavam a caminho de sua casa. Depois, finalmente preso e exilado. Voltou para o Brasil dizendo que nunca foi anti-militarista, o que deixou ele numa situação ruim com a esquerda da época. Mas ser anti-militarista e de esquerda não necessariamente coincide.

Fez então o disco de que falo aqui, todo cheio de pedidos à Deus, falando de pessoas perdidas, lembrando do “anel que tu me destes, eu guardei para me salvar”. Lamentos e um passado que dói de saudades. Um violão e uma gaita ou guitarra de acompanhamento, acordes simples e uma voz solta no vagar do aboio. Ia assumir, logo depois, uma carreira de funcionário público, próximo ao exército. Disse que nunca voltou do exílio e que não vive no Brasil. Aliás, diz que a maioria das pessoas que vivem neste país não mora mais no Brasil.

O ano era 1973, estamos em 2011. Deu uma entrevista esses dias para a Globo, que me impressionou pela ironia que trazia no rosto. Acham que está louco. Parece-me desiludido. largou a carreira artística, já se despedia neste disco e virou funcionário público, talvez para curtir em paz sua saudade.


Um comentário:

Ana Rosa Amor disse...

Felix, muito bom! Lindo seu olhar pro Vandré... Salvou um pouco ele pra mim... Talvez tenha salvado por inteiro, estou arrepiando com a tristeza da música.