terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Resenha do texto de Luce Irigaray: "Este sexo que não é um"

Infelizmente, boa parte do que vou escrever agora só vai fazer sentido (ou não) para psicanalistas.

Luce IRIGARAY
Este sexo que não é um (resenha)

Algo que me causou uma impressão nesse texto é que a autora faz um texto de psicanálise, a partir de Lacan, mas não concorda com todas as suas asserções sobre a mulher. Ainda bem.
Muitas vezes se leem os textos de Lacan ou de Freud com uma noção de autoralidade que Foucault chama de “fundadores de discursividade” isso de uma forma algo arbitrária, ele mesmo diz. São autores que dão início a uma tradição de pensamento, o que coloca seus textos numa relação de verdade com a ciência na necessidade de haver uma recorrência a seus textos na produção do discurso desta mesma ciência. Assim se cria, de saída, uma posição transferencial, mas que vai ser nuançada e caso a caso. Um fundador como este pode ser tomado como dono da verdade, sujeito suposto saber, entre outros. Alguns podem tomar a coisa em um sentido quase de texto sagrado, onde as incoerências e preconceitos não são trabalhados e a coisa, como Lacan mesmo brincava “se tornará um belo fóssil”. Outros podem encontrar confirmações nas entrelinhas de uma enunciação, que por medo de torná-la própria, se tornará de outro. (acho que o caso mais claro disso são as referencias exaustivas de Lacan à Freud, quase colocando palavras em sua boca de tanto decifrar suas intenções.) Enfim, estes autores pedem um retorno constante e muito da graça do desenvolvimento dos discursos fundados por ele reside na forma que cada um vai lê-lo para dar diferentes suportes seja a sua transferência com o autor, seja à transferência ao discurso fundado por este, seja as suas inclinações desiderantes.
 É uma questão de ver o valor de verdade de uma maneira diferente. A maneira do Foucault de falar sobre isso era de estudar ( o que equivale quase a dizer) a verdade como ato, como veridicção, que em certo sentido é uma arte, em outro um ato de fala.
                Essa perspectiva envolve falar desses autores  como por vezes instituindo o campo, por vezes o desenvolvendo e o lugar de verdade é diferente em cada caso. Cabe pensar que uma parte importante do trabalho de qualquer psicanalista é a queda do sujeito suposto saber. Sempre que há suposição, há sujeito (LACAN,1973). Mas o saber de que se trata nessa articulação “suposto saber” é o saber inconsciente, muda de estatuto até porque ele não é enunciado de maneira assim, assertiva. Esse saber é enunciado mais por índices e indícios que por qualquer outra coisa. Isso aponta mais para a criação de verdade e desdobramento do saber. Uma das coisas que Lacan põe é que a verdade pode ser dita (meio-dita), mas o saber inconsciente não, ele é suposto.
Na verdade, existe muito mais entre as diferenças de Lacan e Foucault sobre a verdade, mas não de forma incorrigível. A maneira do Lacan a ver é um pouco menos enunciativa, apesar dele mesmo colocar regras para que a verdade seja enunciada. Acho que esse é um ponto que o conceito do Foucault termina engolindo a do Lacan, nos obrigando a tomar um pouco de distância da concepção deste. Mas acho que esse debate merece outro texto, não esse.
                Estes textos de Lacan, alguns carregados de, digamos, veridicção, trazem em seus enunciados e o momento e lugar de percursos  e de contextos para que algo como a psicanálise se coloque por fim como indo para além destes mesmos autores fundadores. Isso implica separar autor de discurso. O discurso teria, assim, algo de uma vida própria, que passa pela divisão do autor, ou seja, do fato que mesmo alguém como Freud e Lacan se colocam como divididos pela doutrina mesma que eles criaram.
                Achei importante falar brevemente de um tema tão denso porque acredito ser a melhor maneira de começar a falar desse texto de Luce Irigaray. Ela trabalha algumas das questões da psicanálise com a mulher, de maneira bastante avisada sobre os preconceitos recorrentes.  A contra-transferência, dizia Lacan, é a soma dos preconceitos do analista. O lugar mais propício para que isso aconteça é no que diz respeito à sexualidade feminina.  Ela sempre foi pensada a partir de parâmetros masculinos. A própria noção do Lacan, apesar de trazer muitas perspectivas inovadoras, contém ainda toda uma fantasia de homem a respeito da mulher, especialmente em seus aspectos de divinização, onde podemos sentir aquela ambivalência tão comum quanto a de um poeta com sua musa.
                A partir disso, Irigaray aponta para a questão do desejo da mulher ser dado por procuração, em relação ao desejo masculino. O curioso é ela trazer que, dado esta inclinação milenar patriarcal sobre a mulher e seu corpo, seria necessário inventar outro alfabeto. Num certo sentido isso caminha lado a lado com a asserção lacaniana de mostrar o quanto há de fálico em cada universal, de pensá-lo como uma impropriedade irrealizável da sexuação masculina, que regula até mesmo o discurso filosófico.  Junto disso, Irigaray coloca o in(de)finito da sexualidade feminina, trazendo ao infinito a indefinição inuniversalizavel num modo único de gozo. O gozo feminino como múltiplo, passando por todos os objetos parciais.
                É claro que fica no ar se esse in(de)finito da sexualidade feminina não é resultado de séculos de opressão. “Como rejeitos ou dejetos de um espelho investido do sujeito masculino”. Isso caminha lado a lado com a noção de objeto “a” ou de objetos parciais, mas a diferença é que Irigaray fala disso a partir de um lugar, que é para além do conceito, a produção do contexto do conceito em séculos de opressão.  Ela também não parece querer colocar a história como causa, mas antes mostrar que a condição atual da sexualidade feminina está posta em contexto e conceito.
                Enfim, a questão recai sobre não ser “uma”, que leva diretamente a dificuldade com a ideia de uno, de totalidade. Uma das falas do Lacan, que é interessante por ser ela mesma enigmática é “Il y a de l’un” que quer dizer, há do um. Ou seja, existe do um, mas do um como incontável. A fala de Irigaray, de falar que o sexo feminino não é um é  permite entrever que esse debate vai para além da sexuação, especialmente se entendermos a sexuação como algo que também dará a tônica da maneira de pensarmos o mundo e suas relações (impossíveis).
                Mesmo que essa perspectiva seja muito importante, o seu texto não parece se focar nisso. Ela assume uma perspectiva política, porque a política é algo tão relacionado a estas questões de lógica, que falar de política na maneira que Irigaray fala é já conversar sobre esta lógica. O texto fala muito de como a mulher foi sempre usada como valor de troca, que põe em questão que falar sobre sua libertação é desde já afirmar que muitas das qualificações postas sobre a mulher advém de sua submissão. A tomada como valor de troca é a economia fálica se imiscuindo na forma mesma de se pensar as mulheres que de saída não estão inteiras presas nessa economia, mas que cada desvio, à luz da universalidade, se volta novamente para essa “função parasita” que é o falo(Lacan, 1973). Ou seja, é necessário sair um pouco desta economia para que possamos de novo pensar a mulher precisamente a luz da não existência da relação(rapport) sexual.

                Mas para tanto, é preciso rever uma postura de se pensar a mulher apenas no negativo do universal fálico, para poder criar assim uma nova positividade, que reavalie algumas dessas posições. A psicanálise lacaniana, por exemplo, precisaria se reinventar, superar alguns preconceitos, o que equivale a pensar com mais calma sua própria contra-transferência. O que quer dizer, às vezes, ler Lacan contra Lacan. 

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